Livro infantil inspira ilustrador a revisitar a própria infância e buscar respostas sobre neurodivergência

Foto: Arquivo pessoal

O convite para ilustrar um livro infantil foi o início de uma jornada de autoconhecimento para Will Amaro, ilustrador de Curitiba.

Aos 35 anos, enquanto trabalhava nas ilustrações do livro "Miguel, um artista autista", Will começou a identificar na história aspectos da própria infância, o que o incentivou a buscar uma investigação clínica para saber se é neurodivergente.

A introspecção, a forma de expressar os sentimentos e o refúgio na arte são algumas das coisas que ligam o ilustrador ao protagonista. A conexão serviu como combustível para a criação.

"Quando eu fui criar Miguel, os ambientes e as situações em que ele estava, eu acabei puxando muito das coisas que vivi", conta.

Para o ilustrador, a possibilidade de receber um diagnóstico foi essencial para dar um novo significado ao que já passou.

"Você não muda o que aconteceu e tudo o que você viveu. Mas, quando você olha para trás, você pensa em situações que foram difíceis, algumas coisas que você não entendeu porque aquilo aconteceu. Você cresce lidando com certas dificuldades nesse sentido, você se culpa por coisas do passado que você não entendia como funcionava e você acaba carregando essa culpa por muito tempo e ela sobrecarrega".

"Quando você entende que, na verdade, era o seu funcionamento que era diferente das outras pessoas, é como se você tirasse isso das costas e ficasse mais aliviado", conta Will.

Para Priscila Pereira Boy, autora de "Miguel, um artista autista", a experiência de Will comprova que o livro já nasce cumprindo o papel dele.

"Eu fico pensando no papel da literatura, no papel de um livro, de uma história bem contada. A gente quebrar os estereótipos, quebrar os preconceitos, trazer para o Will a possibilidade de ele se enxergar com olhos de generosidade, com olhos de normalidade, se enxergar como alguém de potencial. Laudos são ponto de partida, não são pontos de chegada", afirma.

Com o livro, o ilustrador espera que, assim como ele, outras pessoas tenham essa oportunidade de autoconhecimento, ou ainda que famílias possam ter um olhar mais atento para as crianças.

"Eu fico imaginando como teria sido a minha história se tivesse mais apoio, se as pessoas soubessem mais a respeito de tudo isso. Eu imagino que, com o livro do Miguel, essas crianças podem ter uma trajetória, talvez, menos árdua daqui para frente", conta.

Segundo Matheus Trilico, neurologista que atua no diagnóstico e acompanhamento de pacientes adultos com autismo, o conceito-chave para a investigação clínica é se entender.

"A partir do momento em que a gente começa a explicar isso de um ponto de vista médico, neurológico, neurobiológico, passa-se a entender melhor por que esse cérebro, essa pessoa, funciona daquela maneira e conhecimento é algo que ninguém te tira. Quando você entende melhor o seu funcionamento você passa a ter qualidade de vida", explica o médico.

Caso a investigação clínica se confirme, Will entrará na estatística de pessoas que receberam o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA) tardiamente.

O Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou 2,4 milhões de pessoas com diagnóstico de transtorno do espectro autista, o que corresponde a 1,2% da população brasileira. Dentro deste grupo, o Censo encontrou cerca de 1,3 milhão de pessoas com mais de 19 anos que afirmaram ter diagnóstico de TEA. Esta foi a primeira vez que dados sobre o transtorno foram computados no Censo.

Caracterizado, principalmente, pelas dificuldades em comunicação e interação social, bem como a presença de padrões de movimentos restritos e repetitivos, pessoas no espectro têm uma forma diferente de vivenciar experiências, agir e interpretar o mundo.

Segundo Trilico, em geral, o diagnóstico do autismo é feito ainda na infância, mas em alguns casos ele chega depois, só na adolescência, ou já na vida adulta.

A falta de acesso a informações sobre o espectro, o estigma social, a maneira como o autismo se manifesta de forma diferente em cada pessoa e a tendência de confundir sintomas sutis com outras condições são fatores que podem levar ao diagnóstico tardio do TEA.

De acordo com o médico, esses casos costumam envolver pessoas com nível de suporte 1, em que os sinais são mais sutis e podem ser mascarados e/ou negligenciados.

Na vida adulta, a busca pelo diagnóstico costuma ocorrer quando a pessoa identifica características semelhantes às de alguém já diagnosticado.

"Hoje, o diagnóstico acontece nos adultos por se ver características em pessoas muitas vezes mais jovens, crianças ou se reconhecer com seus pares", explica o neurologista.

Trilico reforça que, nessa jornada, a investigação clínica é importante para a determinação do diagnóstico, que depende de critérios específicos.

"No diagnóstico de autismo, os critérios são clínicos, portanto, ele é baseado em características humanas. Isso significa que qualquer pessoa no mundo pode ter características, mas que nem todas terão diagnóstico", detalha.

Atualmente, conforme o neurologista, o diagnóstico clínico pode ser feito por qualquer médico especializado na área. Porém, o médico reforça a importância do acompanhamento de uma equipe multidisciplinar no processo.

Para o neurologista, quando o assunto é diagnóstico de TEA em adultos, muitos avanços foram conquistados nos últimos anos, mas ainda há um longo caminho para ser percorrido.

"O foco continua sendo as crianças e isso em algum momento vai ter que mudar, porque essas crianças irão crescer, e o que a gente vai fazer com elas? Quem será o suporte dessas pessoas quando elas envelhecerem? Quem vai cuidar delas? Ainda não se pensa muito a respeito disso, mas em algum momento será importante", afirma.

Fonte: G1